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O centenário de Luiz Gonzaga


No ano do centenário de Luiz Gonzaga (que se completará no dia 13 de dezembro), o baião, gênero que consagrou o sanfoneiro, mantém destaque no cenário musical e mostra que permanece vivo na MPB

“Eu vou mostrar pra vocês/ Como se dança o baião/ E quem quiser aprender/ É favor prestar atenção”. Depois desse manifesto lançado na canção Baião, ninguém ficou alheio ao novo gênero que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira acabavam de apresentar em 1946. O ritmo estourou, conquistou multidões, colocou o Nordeste no cenário da música popular brasileira e ainda hoje influencia gerações.

A canção foi gravada pela primeira vez pelo conjunto Quatro Ases e Um Coringa, da gravadora Odeon. A participação de Gonzaga, ou Lua, como era conhecido, restringiu-se a acompanhar o grupo com sua sanfona. A música estourou e, em 1950, Lua gravava a sua versão. Assim, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira consagravam-se o rei e o doutor do baião, respectivamente.

Apesar do sucesso, Lua não foi o primeiro a levar a música nordestina para o sul do país. Antes dele, outros tentaram. Exemplo disso é o sucesso Luar do Sertão, consagrada composição de João Pernambuco com letra de Catulo da Paixão Cearense. Além de Lauro Maia, maestro e compositor cearense, que introduziu o balanceio, ritmo produzido pelos conjuntos de zabumba, sanfona, pífaro e triângulos do Nordeste. Mas nenhum deles alcançou a mesma projeção de Luiz Gonzaga.

O rojão, como também é chamado o gênero criado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, nasceu da tradição popular, de um pequeno trecho musical executado pelas violas dos repentistas durante os intervalos entre um e outro desafio ou à espera da inspiração, como explica o historiador José Ramos Tinhorão no livro Pequena História da Música Popular – Da Modinha ao Tropicalismo (Art Editora, 1986).

“Quando eu toquei o baião para ele (Humberto Teixeira), saiu a ideia de um novo gênero. Mas o baião já existia como coisa do folclore... O que não existia era uma música que caracterizasse o baião como ritmo”, declarou Lua à revista Veja, em 1972, sobre o processo de estilização do novo tipo de canção popular e, principalmente, como ritmo de dança.
Momento certo

A partir da década de 1950, o processo de migração crescia de forma acelerada e, duas décadas depois, o Brasil era um país urbano. Nesse contexto, Gonzaga encontrou o momento e contexto favoráveis à divulgação da música nordestina: o baião, o xaxado, o coco, o xote...

“Ele trouxe um novo modo de olhar para o sertão, o Nordeste, a cidade, a migração e a condição do migrante”, explica a professora da Universidade Federal do Ceará e autora de ?Luiz Gonzaga, o Sertão em Movimento (Editora Annablume, 2000), Maria Sulamita de Almeida Vieira. A música Lá no Meu Pé de Serra, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, demonstra como a dupla falava diretamente aos milhares de nordestinos que deixavam a sua terra natal. Lá no meu pé de serra/ deixei ficar meu coração / Ai, que saudades tenho/ Eu vou voltar pro meu sertão...

Não foram poucos os músicos que contribuíram para levar o forró nordestino ao grande público. Armados com a santa trindade do baião: sanfona, zabumba e triângulo, inúmeros trios surgiram e seguiram o exemplo de Luiz Gonzaga. E o seu reinado só cresceu. A cantora Carmélia Alves foi aclamada como a “rainha do baião”. Claudete Soares tornou-se a princesa e Luiz Vieira, o príncipe do baião.
Repercussão internacional

O baião também rompeu fronteiras nos anos de 1950, em especial por conta de O Cangaceiro, de Lima Barreto (1953), que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes como melhor filme de aventura e também menção honrosa pela trilha sonora, que entre outras trazia a toada Muié Rendera, música de Zé do Norte, interpretada por Vanja Orico.

Na mesma década, o compositor norte-americano Burt Bacharach veio ao Brasil acompanhando a atriz alemã Marlene Dietrich. “Ele ouviu o baião e se encantou. Entre suas canções de sucesso dos anos de 1960 está Do You Know The Way to San Jose. É muito forte a presença do baião. Só falta o triângulo”, comenta o jornalista e historiador, Paulo César de Araújo, autor do livro Eu Não Sou Cachorro, Não (Editora Record, 2005).

O baião instrumental de Waldir Azevedo, Delicado, teve cinco versões gravadas em Buenos Aires, vendendo mais de 130 mil cópias em toda a Argentina, segundo Tinhorão. A música também passou a fazer parte do repertório dos maestros norte-americanos Stan Kenton e Percy Faith.

Considerado um grande divulgador do novo gênero, Humberto Teixeira buscou promovê-lo no exterior, levando à Europa caravanas de músicos brasileiros, mas sem grandes resultados. Como analisa Tinhorão, o ritmo estilizado por Luiz Gonzaga (assim como ocorreu com a Bossa Nova) não tinha condições de competir com a indústria norte-americana de discos e com a novidade do rock, que tinha em Elvis Presley seu maior ícone. Somente na década de 1980, Gonzaga, já consagrado pelo público e pela crítica, iria apresentar sua obra nas grandes casas de espetáculo de Paris.

Pra onde tu vai, baião?

Depois de rodar o país e fazer muito sucesso, o fim dos anos de 1960 não trouxe bons ventos ao baião. O rádio já estava em declínio. Começava a era da televisão. E, no Brasil desenvolvido, urbano, propagado por Juscelino Kubistchek, a música nordestina perdeu espaço.

Outro nordestino, esse de Juazeiro, na Bahia, entrava em cena e já anunciava que algo novo estava por vir. Era João Gilberto, que em 1959 lançou Chega de Saudade, seu primeiro disco com duas músicas: a que dá nome ao álbum e Bim Bom: “É só isso o meu baião / E não tem mais nada não / O meu coração pediu assim, só...”.

Além da Bossa Nova, que chegava com força, havia ainda os cabeludos da Jovem Guarda. Sem espaço na TV, nos jornais e nas rádios das capitais, Luiz Gonzaga se refugiou no interior do país, onde sua música ainda era valorizada. Gravou, vendeu disco, tocava em circos, comícios e ganhou menos dinheiro, mas não sem reclamar: “Pra onde tu vai, Baião? / Eu vou sair por aí / Tu vais por que, Baião? / Ninguém me quer mais aqui”, canção de Sebastião Rodrigues e de João do Vale.

Este último já havia sido parceiro de Lua em 1957, com O Cheiro de Carolina e mais tarde seria reconhecido com suas músicas de protesto, em especial por Carcará, que teve interpretação brilhante de Maria Bethânia no teatro Opinião, ao abordar o tema da migração dos nordestinos.

Outro exemplo de resistência foi o Xote dos Cabeludos, de Gonzaga e José Clementino: “Atenção senhores cabeludos / Aqui vai o desabafo de um quadradão / Cabra do cabelo grande / Cinturinha de pilão / Calça justa bem cintada / Costeleta bem fechada / Salto alto, fivelão / Cabra que usa pulseira / No pescoço medalhão / Cabra com esse jeitinho / No sertão de meu padrinho / Cabra assim não tem vez não...”.

O baião demorou a ser valorizado. Na avaliação de Paulo César de Araújo, Gonzaga alcançou grande sucesso popular, ficou na memória afetiva das pessoas, vendeu muitos discos, mas o reconhecimento por uma elite intelectual veio quando ele já era sexagenário. “O bom era a Época de Ouro da MPB, que vai de 1930 a 1945, com nomes como Noel Rosa, Wilson Batista, Cartola e Nelson Cavaquinho. Quando surge a Bossa Nova, em 1959, o baião ficou no meio, entre a tradição e a modernidade. Com isso passou a ser tratado como um momento menor da nossa música”, lamenta o jornalista.
A volta da Asa Branca

Mas, se o próprio João Gilberto citou o baião ao lançar a sua bossa, talvez nem tudo estivesse perdido para Luiz. No final da década de 1960, os festivais traziam novos nomes, muitos deles do Nordeste, que foram influenciados pelo furacão Luiz Gonzaga.

“Ele foi para o Brasil o que Elvis foi para os americanos. Sem dúvida, ele é um dos gigantes da nossa música. Está no mesmo patamar que João Gilberto e Pixinguinha”, compara Paulo César. Em 1968, os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil já traziam Luiz Gonzaga em sua memória afetiva e o declararam em diversas entrevistas. Com isso, o baião ganhou o aval de dois jovens expoentes da MPB.

Além disso, um boato do jornalista Carlos Imperial contribuiu para que o velho Lua voltasse à mídia. Circulava a notícia de que os Beatles haviam regravado Asa Branca. Mas quem retomou o clássico foi Caetano Veloso, ao lançar na Inglaterra o seu primeiro disco concebido e gravado no exílio. No repertório, seis canções em inglês, com exceção de Asa branca, na qual Caetano exprime profunda tristeza por estar longe do Brasil. Luiz Gonzaga e o baião voltam ao cenário da MPB.

A semente já havia sido plantada. Isso porque a geração de músicos que surge na década de 1970 cresceu ouvindo o gênero perpetuado por Gonzaga. Na lista, destacam-se Fagner, Belchior, Elba Ramalho, Zé Ramalho, Morais Moreira, Alceu Valença, Milton Nascimento, Dominguinhos, entre outros.

Até no rock, Gonzaga vai deixar sua marca. O baiano Raul Seixas apresenta em sua música uma mistura de rock com baião, deixando clara a influência de Elvis e Gonzaga em sua obra: “Tenho 48 quilo certo 48 quilo de baião / Num vou cantar como a cigarra canta / Mas desse meu canto eu não lhe abro mão / Num vou cantar como a cigarra canta / Mas desse meu canto eu não lhe abro mão / Let me sing, let me sing / Let me sing my rock’n’roll...”.

Desde que surgiu, o baião esteve presente nos mais diferentes momentos da MPB, como na Bossa Nova, no Tropicalismo e no Pop Rock Nacional. “A música de Gonzaga continua aí, influenciando direta ou indiretamente as novas gerações”, defende Paulo César de Araújo. As músicas do rei influenciaram o movimento Manguebeat na década de 1990, com Chico Science e a Nação Zumbi, Cordel do Fogo Encantado, Mestre Ambrósio, Lenine, Zeca Baleiro, Paralamas do Sucesso, Marisa Monte, Marcelo Jeneci e tantos outros.

Fonte: Revista E, do SESC
Autor: Assis Ribeiro

P.S.: Em homenagem a Gonzagão, no dia 13 de dezembro comemora-se o DIA DO FORRÓ.


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